quinta-feira, 14 de julho de 2022

A MORTE DE UM CHEFE BANTU NA CULTURA AFRICANA

(interpretação do óbito e o funeral do ex-presidente da República José Eduardo dos Santos)

 

Ritos e cerimónias

O conceito mais comum sobre a morte nos revela que “morte é a separação do corpo e da alma, é (ruptura do equilíbrio) dos elementos constitutivos seguida duma destruição imediata ou progressiva, total ou parcial de certos elementos, enquanto os outros são promovidos a um novo destino. Quando o princípio vital (alma) se retira, o corpo fica sem sopro vital, morre, arrefece, (não vive)” KUNDONGENDE  (2012:180).

Já na cultura Bantu na língua umbundu “olofa ou kalunga” significa morrer, “kalunga” traduz também “Mar” é algo transponível, especial, enorme, aquilo perante o qual todos espantam, “wanda kokalunga, kalunga otchimbondo”. Kalunga tem também o sentido de “alunga” coisas separadas. Neste sentido a morte “kalunga” se põe como um acontecimento que separa as duas realidades, que é o mundo visível e o invisível. O termo quer dizer também “Deus” admirado e incomensurável CHOMBELA G. (2013:100-101).

 

ONDJEMBO

 

Ondjembo na língua umbundu define como eternidade, nossa morada, significando não só a nossa futura morada, infinito, nosso eterno destino, mas também, e por outro lado nossa morada donde viemos. Na sua opinião, esta ideia é fundamentada na crença da irrupção dos espíritos dos antepassados no mundo sensível, para transmitir nos membros da família qualidades e espíritos dos ancestrais (onde ohuvi) etc., encontramos a reflexão dessa crença sobre tudo no folclore, nos provérbios e nos antropónimos.

 No caso da morte de um chefe Bantu constitui-se uma comissão de família que se chama VAKWATCHISOKO compostos por (Ise yomola, Kandjende, Ndjimbo,Tchimbungu, Ndjende ou Ndjendjekulu), para realização da cerimónia de óbito, sendo porém que tais ritos acontecem de cultura para cultura.  

Antes de ser enterrado, é realizada uma cerimónia que dá lugar a indicação do próximo sucessor ao trono, sendo porém que, a responsabilidade de indicar o sucessor é do morto ou da família, caso tenha deixado filhos legítimos e idóneos ou sobrinhos idóneos com maturidade e vasta experiência, é aí onde se escolhe o sucessor (já que é pela linhagem. No caso da não existência dessas pessoas, faz-se eleições onde participam os membros da corte e sua comunidade para eleger nova autoridade tradicional. Até mesmo o cemitério, ele é que deve indicar caso não tenha deixado recomendações enquanto vivo ou a família no caso no último caso.

A cerimónia começa com a nomeação do responsável do óbito: 1) ISE YOMOLA (pai do morto, advogado ou coordenador do óbito), que pertence a parte paterna - é o número “um” do óbito e que orienta todas entidades do óbito, é responsável por contar todo histórico da morte do falecido, dá explicações a todas pessoas que visitarem o óbito, e ainda tem a tarefa de indicar todas equipas que ali trabalham.

Por exemplo, pode ser um (ancião) ou mais velho idóneo que sabe fazer Ulonga (raciocínio ou relatório), o único que narra, a trajectória da doença, as dificuldades que atravessou na doença, o tempo da doença, o nome da doença, ocupa-se dessa tarefa até terminar o óbito, fica no centro rodeado de cadeiras organizadas para receber visitas, quando chega uma ou mais pessoas antes de os mesmos acomodarem-se no óbito primeiro dirigem-se a ele para ouvir a trajectória (ulando) do malogrado. Depois de toda abordagem aguardam no local um tempo até chegarem outras visitas para também ele (Ise yomola) não ficar solitário no recinto, só depois de chegarem novas visitas eles retiram-se. Para os ovimbundu é frequente.

No caso do género feminino se chama 2) KANDJENDE - é a mulher responsável para comunicar-se com as demais mulheres no óbito (narra o histórico do óbito). Tem quase a mesma tarefa com a do ise yomola. É também responsável para receber as condolências (Okapolo), e mantém em comunicação com (ise yomola) o responsável do óbito enquanto um atende as pessoas lá de fora, ela, mantem-se lá de dentro atender as mulheres.

Vakwatchisoko no plural, Ukwatchisoko no singular – são parentes da linhagem mais alargada que normalmente não podem ser co-sanguinário próximo, para não ser contaminados pela doença causada. Os mesmos são nomeados para tarefa de Ndjimbo que também o fogo deles é posto de parte, a sua cozinha idem, e os mesmos são responsáveis por acender o fogo todo do óbito que nunca deve apagar até terminar o óbito e ninguém deve pedir. 3) VANDJIMBO - no plural, no singular Ndjimbo (coveiro) “ndjimbo” o nome deriva de um animal místico selvagem (porco-formigueiro) que cava no período nocturno, sendo que estes são responsáveis por cavar a campa/túmulo (eyambo) com um rito a respeitar; entrega de uma galinha preta, a cabeça do animal morto no óbito, aguardente e a fuba para o seu sustento durante os trabalhos incumbidos. Conta ainda o velho Kanivete que, se uma mulher morrer com gravidez são eles que enterram de acordo com os costumes, mas antes deverão retirar a criança na barriga da mãe falecida, o mesmo acontece quando morre com a barriga inflamada sem gravidez. 4) TCHIMBUNGU - é uma mulher nomeada na parte da prima, àquela com quem brincava a falecida enquanto se encontrava em vida; esta é indicada para cuidar do cadáver que (pode limpar tanto lágrimas como secreções do cadáver). Outra tarefa sua é de animar as pessoas enlutadas em forma de humor, pode ainda sorrir, as vezes brincar ou chorar.

O nome de Tchimbungu provém de um animal também místico que só circula as noites e muito preto, estilo de urso que tem parêcnia com a (Hiena), feio, a sua pele também serve para detectar problemas tradicionais. Tchimbungu representa a vida do homem na terra, o buraco do octhimbungu vai até a outro mundo, à eternidade. 5) NDJENDE ou NDJENDJEKULU (tio do falecido) - nomeado pela parte paterna do falecido, que termina ou encerra com o óbito. Antigamente, depois do óbito, procurava-se um médico tradicional para tratar a família no sentido de a doença não voltar acontecer no seio familiar. Ndjendjekulo é também a pessoa que entrega a noiva ao noivo no dia do casamento.

No caso em concreto da morte do ex-Presidente da República José Eduardo dos Santos, o assunto não devia fugir a regra, cabendo apenas adaptar a sua realidade, sendo porém que o óbito é da família e deve obedecer os costumes da família, e é a família que escolhe o responsável do óbito (ISE YOMOLA), que com ele o Estado Angolano deve negociar já que representa toda família, (talvez havendo protocolo da igreja) pondo de parte os conflitos políticos (internos) para ser enterrado de acordo com os ritos considerados como funeral digno para um chefe Bantu.

No caso de ser enterrado no território alheio, serão violados todos esses pressupostos tradicionais, e a violação de uma tradição segundo a nossa cultura tem grandes repercussões na ancestralidade, que podem trazer consequências desastrosas para a família em particular, e no pais em geral.

Entretanto, na cultura Bantu os que morrem vivem entre nós, só não participam fisicamente mas nos acompanham espiritualmente, por isso, quando “morre um mais velho mata-se uma biblioteca”.

  Os mais velhos possuem força extraordinária por serem fundadores e propagadores da força vital recebida de Deus. São algo mais do que seres humanos espiritualizados. Eles pertencem a uma hierarquia superior participante, em certo modo, directamente da força divina. 

Muita das vezes quando não se cumprem rituais familiares acaba-se por ignorar os ancestrais pelo que ao longo da vida acontecem consequências enviadas pelo mundo invisível, porque os antepassados também rejeitam aqueles que desobedecem a ética tradicional.

Os ancestrais também gozam dos seus direitos, aqueles que o Chico Adão (2005:77) refere como “Direito Ancestral” que rege o comportamento das pessoas e abrange todas situações respeitantes à descendência.

O PODER DA PALAVRA

Não nos esqueçamos que a morte e a vida estão no poder da língua e que cada um se alimenta daquilo que suas palavras produzem (prov.18.20-21).  Portanto, o que nós falamos pode salvar ou destruir uma vida; e a Bíblia nos adverte usar bem as nossas palavras para sermos compensados KAPITIA (2008:130).

A FAMÍLIA DOS SANTOS

A família dos Santos pela sua elasticidade pertence a um CLÃ constituído por um grupo de pessoas que tem um ancestral comum, uma linhagem de descendência e ascendência. O clã pode ser composto por 3 ou mais linhagens familiares mas nunca mais de 5.

Porque, nela distinguem-se várias linhagens de famílias conforme caracterizou Pepetela, onde ALTUNA (2006:130-131) ilustra-nos claramente esta questão ao dizer que, “o Clã é formado por grupos familiares, de várias famílias alargadas situadas num plano social mais amplo. Que constituem já um arquétipo político.

 

Graciano Catumbela

Activista social, escritor e investigador cultural

11.07.2022

 

 

 

Referências Bibliográficas

ALTUNA, A. R. R. (2006, 2014). Cultura Tradicional Bantu Editora paulinas, 2ª edição, Lisboa artipol-artes tipográficas, Lda Águeda (Portugal).

ADÃO, C. (2005).As Origens do fenômeno Kamutukuleni e o Direito Costumeiro Ancestral Angolense Aplicável, Lisboa: Edições Piaget,

CATUMBELA, G. (2022). GENEALOGIA Familiar e Aspetos da Cultura Bantu, hábitos e costumes na tradição dos Umbundu, (inclui casos dos tribunais tradicionais e direito costumeiro) 2ª edição, editora shalom, Benguela-Angola.

CHOMBELA, G. P. (2013). (K´) ONDJEMBO, elementos epistemologicos do Eskaton antropológico na paidéia “Hanha” entre os Ovimbundu. Edizioni Viverein, Roma.

KAPITIA Francsco Mesa Rendonda de Animais (2008), fábulas e contos comentados provérbios em umbundu 1ª edição Benguela (Angola).

KUNDONGENDE, C. J. (2012). Crise e Resgate dos valores morais, cívicos e culturais na sociedade angolana, um contributo para a inversão de valores éticos. CERETEC - Huambo.